Gerardo Mello Mourão em um quadro do artista Nelson Nóbrega de 1988, óleo sobre tela, tamanho 71x50cm.

O magnífico artigo que lerão a seguir, de autoria do poeta e jornalista José Inácio Vieira de Melo, co-editor da revista Iararana, foi escrito – especialmente para o Jornal Opção – por ocasião das celebrações dos noventa anos daquele que foi considerado o maior poeta do Brasil por Carlos Drummond de Andrade, Wilson Martins, Octavio de Faria e José Cândido de Carvalho, dentre tantos outros ilustres escritores e críticos literários.

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Gerardo Mello Mourão chega aos 90 anos – completados no dia 8 de janeiro – como uma das vozes mais representativas da li­teratura brasileira contemporânea. Um poeta de expressão sin­gular, considerado por vários críticos e muitos escritores – entre eles Carlos Drummond de Andrade, Wilson Martins, José Cân­dido de Carvalho e Octavio de Faria – como o poeta maior do Brasil.

Nascido em 1917, no pé da serra do Ibiapaba, em Ipueiras, sertão do Ceará, Gerardo teve uma vida bastante acidentada e cheia de aventuras. Sua obra tem merecido, ao longo de mais de meio século, a atenção de grandes nomes da literatura oci­dental, como Ezra Pound, Octavio Paz, Jorge Luis Borges e Ro­bert Graves.

Aos 11 anos foi para o Seminário São Clemente, em Congonhas do Campo, Minas Gerais, onde permaneceu até os 18 anos, pe­ríodo em que aprendeu nove idiomas e traduziu, num exercício diário, textos do grego e do latim, de Homero e Píndaro, Virgílio e Horácio, Ovídio e Propér­cio.

Abandonou o convento em 1935, poucos meses antes de pro­ferir os votos de pobreza, castidade e obediência. Começou a estudar direito, mas abandonou. Logo em seguida, aderiu ao Integralismo, assim como Câmara Cascudo e Adonias Filho, conduzido para o movimento pelo crítico Tristão de Athayde. Foi preso 18 vezes durante as ditaduras do Estado Novo e Mili­tar. Numa delas, ficou no cárcere cinco anos e dez meses (1942-1948), quando escreveu o célebre romance O Valete de Espadas e dez elegias de perdição reunidas no livro Cabo das Tormentas. Viajou por toda a Europa, América e Brasil.

O país em que viveu mais tempo, no exterior, foi o Chile, onde deu aulas na Universidade Católica de Valparaíso. Na década de 1980, morou em Pequim, na China, onde foi correspondente do jornal Folha de São Paulo. Mais precisamente, foi o primeiro correspondente brasileiro e sul-americano na China. Escreveu, até pouco tempo, crônicas diárias para os principais jornais do Brasil.

A vasta e variada obra de Gerardo Mello Mourão integra uma das mais elevadas contribuições para a literatura contemporâ­nea e consegue alcançar dimensões universais, como é de se esperar de toda alta escritura. Escreveu, com brilhantismo e erudição, em verso e em prosa (romances, contos, ensaios e biografias). Entre seus livros, destacam-se o romance O Valete de Espadas (1960), o livro de ensaios A Invenção do Saber (1983), a epopéia Invenção do Mar (1997) e a trilogia poética Os Peãs, composta pelos livros O País dos Mourões (1964), Peripécias de Gerardo (1972) e Rastro de Apolo (1977).

O Valete de Espadas, traduzido para vários idiomas, é um ro­mance que está na pauta do surrealismo, mas em quase nada se assemelha ao realismo mágico latino. Sua profundidade, seus abismos indecifráveis, aproximam Gerardo de autores cen­tro-europeus, como Herman Hesse, de O Lobo da Estepe. O personagem principal, Gonçalo Falcão de Val-de-Cães, é um ser perplexo diante da irresidência do ser no mundo. Um dia, ao sair do hotel em que estava hospedado, percebe que está em uma cidade completamente desconhecida; no dia seguinte, acorda em um navio cujo rumo também desconhece. A epígrafe bíblica, logo no início do livro, adequa-se perfeitamente ao es­tado de coisas e às tensões da personagem: “Não conheço se­quer o caminho”.

A Invenção do Saber, reunião de ensaios, é um convite ao pensamento. É também um libelo contra a idolatria tecnológica da atualidade e o seu culto da especialização – “o especialista é o individuo que sabe cada vez mais sobre cada vez menos”. E apresenta como contraposição uma cultura humanística, que, no momento, encontra-se desprestigiada, mesmo por aqueles a quem caberia defendê-la. Inclui, além de 30 artigos originaria­mente publicados na imprensa, palestras apresentadas em uni­versidades brasileiras e estrangeiras, que abordam temas como a palavra, o poder e o saber.

A epopéia Invenção do Mar, Prêmio Jabuti de 1998, é conside­rada pelo crítico Wilson Martins como Os Lusíadas brasileiro, que o chama mesmo de “Os Brasíliadas”, em artigo publicado no jornal Gazeta de Curitiba.

De fato, Mello Mourão, por outros caminhos e de outras formas, alcança o sopro criador de um Camões, aliás, faceta essa que já havia logrado com Os Peãs. Ezra Pound percebeu na trilogia Os Peãs, iniciada com O País dos Mourões, que Gerardo tinha inaugurado o canto da genealogia da América. E esta é uma velha ambição cosmogônica: fazer, não a genealogia pessoal, mas a genealogia do seu povo, do seu mundo.

Passear pela seara da obra de Gerardo Mello Mourão é sentir o “aroma, maciez e música” de uma poesia maior. Nenhum outro poeta brasileiro recebeu, em quantidade e qualidade, número tão grande e tão respeitável de artigos sobre sua obra. So­mente os literatos de ouvidos cegos, que não conseguem al­cançar o ritmo da sua poética poliédrica, é que não percebem a sua grandiosidade.

O próprio Drummond declarou-se “possuído de violenta admira­ção pelo imenso, dramático e vigoroso painel” da poesia de Gerardo, pois sabia do opus magnífico do bardo de Ipueiras, que “atestará para sempre a grandeza singular e a intensidade universal da poesia”. Mello Mourão não cabe em moldes nem em escolas literárias. É singular. E vem construindo, solitário, a saga do povo brasileiro.

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