Há cinquenta anos – como voa o tempo! – um rapaz franzino, de olhos arregalados e apaixonados pela vida, inaugurava, no país do Ceará, suas núpcias com a Igreja. Hoje, quando o Padre Hélder Câmara, sentado no sólio de D. Vital, celebra as bodas de ouro de sua ordenação sacerdotal, nenhuma evocação será mais oportuna que a daquele episódio com que outro sacerdote, o primeiro padre da Igreja, o primeiro da linhagem de que descende o arcebispo do Recife, inaugurava também ele sua vida pastoral. Pois conta São Lucas que, no dia em que iniciava seus trabalhos de pregador, entrou o fundador da Igreja do Padre Helder numa sinagoga de Nazaré, abriu um livro que apresentaram e encontrou uma passagem de Isaías, na qual se definiam a sua missão e a de todos os padres que elegeria para continuá-la. leu, então, em voz alta o texto do profeta onde se diz:

“O espírito do Senhor está sobre mim, pois ele me consagrou com sua unção, e me enviou para levar uma boa notícia aos pobres, para anunciar aos prisioneiros a liberdade, para acender a luz dos olhos aos que estão cegos, para trazer aos oprimidos a libertação, e proclamar um ano de graça do Senhor”.

Há cinquenta anos, sacerdote até a medula dos ossos, o Padre Hélder se incorporou apaixonadamente a essa vocação, repetindo, em sua vida apostolar, os lances da vida do próprio Jesus, com aquela aguda consciência de São Paulo, de que o sacerdote é um outro Cristo. E é o próprio São Paulo quem diz que Cristo é este, cuja imagem e semelhança deve ser repetida por seus ministros – irmãos e partidários dos que não têm o que comer, dos que não têm onde morar, dos que não têm roupa para vestir-se, como está naquela passagem de Isaías, que a Igreja lê como epístola, na festa de um santo que foi chamado o “pai dos órfãos”, São Jerônimo Emiliani.

O mundo de hoje, como o de ontem, como o de amanhã, está desgraçadamente dividido em duas bandas: a dos que oprimem e a dos que são oprimidos, a dos que prendem e a dos que estão presos, a dos que torturam e a dos que são torturados, a dos que têm tudo e a dos que não têm nada. a banda na qual hão de estar os ministros de Deus, o partido dos padres e dos bispos, que está definido desde os dias da fundação da Igreja: é o partido dos aflitos, dos famintos, dos açoitados, dos encarcerados, dos revoltados, daqueles para os quais a vida é a permanente vigília dos trabalhos e dos jejuns (2Cor. 6:4-10).

Não tem sido outro o partido do Padre Hélder Câmara ao longo desses cinquenta anos de sua bela carreira de sacerdote, segundo o coração de Cristo Jesus, em cujas mãos ele depositou sua fé e sua esperança de pastor – “in manus tuas” – como está escrito em seu brasão episcopal, de príncipe da senhora pobreza, como São Francisco de Assis. É em nome desse partido, o partido daquele que fundou sua Igreja com os pescadores, os desempregados das feiras e as pobres que carregavam latas d’água pelos suburgos e pelas aldeias, que ele vem também, segundo a palavra do apóstolo, “na benignidade, no espírito santo, na caridade não fingida, na palavra da verdade, pelo poder de Deus, pelas armas da justiça, à esquerda e à direita”, dando o seu testemunho a esses tempos temerários. E fazendo de sua presença no mundo um espetáculo cotidiano – aquele espetáculo do espírito, que é, por isto mesmo, um espetáculo histórico exigido pelo Senhor da história a todos os que o seguem.

Tenho sido – ai de mim! – obscura testemunha do espetáculo da boa loucura cristã que tem sido a vida do Padre Hélder. Não me lembro se foi Zacharias Werner ou Friedrich Schlegel – um dos dois, em todo caso – quem disse um dia do prodigioso padre redentorista que foi São Clemente Maria Hofbauer, que se tivesse que fazer uma inscrição ao pé de seu monumento, para resumir sua biografia e sua imagem, escreveria simplesmente: sempre o mesmo. O padrezinho franzino que, ainda adolescente, vi pela primeira vez transitar pela travessa do Ouvidor, com um grande sigma integralista pregado na batina, agarrado no braço do então capitão Jeová Mota, é absolutamente o mesmo que há alguns anos tem a cabeça praticamente posta a prêmio pelas patrulhas de sicários da extrema direita, as mesmas que martirizaram e mataram um dos padres de sua diocese, o padre Henrique. A fome a sede de Justiça, de que se fala no Sermão da Montanha, são intensas naqueles que as experimentam, como a fome a sede do corpo. E cada um toma o caminho que lhe parece mais eficaz para achar o pão e a água com que se matam essa fome e essa sede. Era, por isto mesmo, tão legítimo o caminho integralista de ontem do jovem Padre Helder, como seus caminhos de hoje, contra a violência maior, a violência da opressão e da repressão. Pois, para saciar a fome e a sede de Justiça dos filhos de Deus, pouco importa a epistemologia da ação. O que é preciso é saciar essa fome e essa sede, pensando e agindo para isso, oportuna e inoportunamente – como prescreve o apóstolo.

Os donos do mundo não se dão bem com o Evangelho. Quando a consciência dos povos lembrou-se, por exemplo, de atribuir ao padre Helder, por sua luta em defesa dos que têm fome e sede de Justiça, a láurea do Prêmio Nobel da Paz, levantaram-se no Brasil todas as patrulhas da violência organizada, para impedir a consagração – que seria obviamente a condenação de um regime político. A pressão final contra o júri do Nobel foi feita com êxito diabólico por um emissário escolhido a dedo, um “brasseur d’affaires” escandinavo que enriquecia no meio do povo pobre deste país, um senhor Boilensen, mais tarde, por outras razões, é claro, justiçado pela insânia e pelo exacerbado desespero dos terroristas. A misericórdia de Deus se apieda de sua alma.

Tempos depois, o mesmo júri do Nobel voltou a si. E acertou por unanimidade conferir ao bispo do Recife o primeiro Prêmio que se atribuiria a um brasileiro. As mesmas forças voltaram a agir, e deu-se um escândalo. Dois dos cinco membros do júri se demitiram, com a declaração pública de que os três outros haviam sucumbido a pressões inconfessáveis, traindo os compromissos prévios em torno do nome de D. Hélder Câmara. Organizações de jovens noruegueses denunciaram, indignadas, o episódio, inédito nos anais do Prêmio Nobel, e levantaram, com donativos populares, uma importância superior ao dobro daquela láurea, elegendo o padre Hélder para ser contemplado com essa bolsa e esse prêmio do povo. O dinheiro foi para nas mãos dos pobres do Recife e pouca gente no Brasil ficou sabendo dessas duas histórias.

Eu mesmo vi o figado sr. Boilensen celebrar com champanhe num restaurante de Oslo sua vitória – sua e do demônio – contra o padre Hélder. Mas esses episódios, grandes talvez para o mundo, são pequenos e marginais na biografia do sucessor de Dom Vital. Grande mesmo, e permanente, é seu caminho na pisada difícil dos apóstolos e do Senhor Jesus. O padrezinho terá um biógrafo do amor de Deus antes dele. Esse biógrafo terá que reunir a doce pureza e a candura cheia de graça de “I Fioretti”, de São Francisco de Assis, e o vigor de Thomas Morus diante dos poderes do mundo.

Pois, para escrever a verdadeira história de D. Hélder, seria preciso contar coisas que eu mesmo vi, silenciosamente escondido numa esquina da avenida Rio Branco, há tantos anos: o padrezinho, com aquela pesada pasta com que andava sempre, e que para Tristão de Athayde carregava os pecados de todos nós, estender a mão a um transeunte e pedir uma esmola, pelo amor de Deus, para tomar seu bonde na antiga Galeria Cruzeiro. Seria preciso contar histórias de suas missas, como uma que tive privilégio de ajudar, no tempo em que se ajudava missas, numa capelinha de freiras em Botafogo, que quase não pode continuar. O padre rompeu em pranto convulso ao ler o Evangelho em que se falava do nascimento do menino Salvador, na pobreza de sua manjedoura de palha. Essa espécie de êxtase das lágrimas é, de resto, quase uma rotina do Padre Hélder, e eu mesmo sei, a este respeito, de uma anedota ocorrido depois de uma dessas suas missas num altar da Basílica de São Pedro, no Vaticano.

A biografia do padrezinho pode ser contada por aquelas amigas preciosas que o tem acompanhado, como as que acompanharam Jesus. As Nairzinha, as Marlon e a saudosa Cecilinha. É contada com histórias como aquela em que, voltando de uma humilde paróquia do Recife, a pé, como sempre anda, perdeu-se numa das ruas da fervilhante zona de meretrício da cidade. As pobres filhas de Deus identificaram o inesperado transeunte e começaram a pedir-lhe benção, em grandes brados, do alto das janelas e das portas de suas casas de derelição. E ele ia, de cabeça baixa, traçando no ar a cruz de Cristo com sua mão episcopal, quando, de súbito, estruge uma ovação, que se seguiria a um grito partido de uma das habitantes daquela rua dolorosa. “Viva D. Helder, viva o Bispo das P.”

A essas cenas, dignas do pobrezinho de Assis e de tantas passagens do Evangelho, podiam-se juntar os capítulos de sua bravura de confessor da fé, no permanente desafio aos poderosos do mundo. Pois a história eclesiástica do Brasil não teria sucessor mais legítimo do que ele para sentar-se no sólio de D. Vital, o grande mártir de nosso Episcopado. Afinal, é tempo de deixar claro que a perseguição desencadeada contra D. Vital, longe de caracterizar “o jovem Atanásio de Olinda e Recife” como um antiliberal, tem suas verdadeiras raízes na defesa da liberdade religiosa diante do regalismo. Não são outras as fontes do ódio que se levantou neste País contra o arcebispo de Olinda e Recife em nossos dias, sobre cuja ortodoxia evangélica também se poderia oferecer outro testemunho. Todos os seus mais candentes pronunciamentos foram sempre autorizados pelo próprio Papa. Os originais de suas conferências, no Brasil e no exterior, têm mesmo, frequentemente, notas manuscritas à margem, do próprio punho de Paulo VI.

Por tudo isso, o padre que hoje celebra suas bodas de ouro sacerdotais ficará, na história do Brasil e na história da Igreja mundial, como a imagem daquele foi ao mesmo tempo o leão de Judá e o Cordeiro de Deus. O Padre Hélder.

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