Como funciona um regime que se baseia na violência.
Em 2022, Marçal era um desses nomes aventureiros que comumente figuram entre os candidatos, nos tempos efervescentes das eleições. Quem era ele? Parece ter sido um coach famoso, mas as informações que tínhamos era de um sujeito que quis fazer uma cadeirante andar, de um sujeito que de alguma forma surreal conseguiu convencer pessoas a subirem numa montanha e lá se prestarem a tantos extremos, que foi preciso bombeiros ir buscá-los. Talvez tenha sido nesse tempo, ou depois, que um de seus discípulos acabou falecendo durante uma corrida que fizera; o coitado foi depois “homenageado” por Marçal, tendo seu nome escrito num tênis de corrida.
O discurso do então candidato à presidência era que os dois nomes mais concorridos, que representavam os polos opostos de esquerda e direita, Lula e Bolsonaro, fossem a mesma coisa, cuja diferença era somente “um dedo”. Ele era o “cara de fora”, o outsider, que vinha oferecer uma outra via diante desses extremos. Seu discurso não vingou e logo não deu cumprimento à sua candidatura.
Depois, seu nome voltou a pipocar na mídia. Era o super-homem, aquele que fazia tudo. Atleta de triatlo, corredor que corria até mesmo dormindo, piloto de helicóptero em urgências, pensava se sobrepor até mesmo ao Senna, autor de livros e livros que segundo ele mesmo o faziam ser maior que Salomão! Ora, era tanto absurdo que saía da boca desse sujeito, que o que se criou em torno dele foi a aura caricaturesca e esdrúxula; humoristas fizeram piadas e piadas sobre ele; em tudo era ridículo e estapafúrdio. Ninguém o levava a sério, sendo óbvias as idiotices às quais ele se prestava.
Nessa mesma época, quando Marçal não era mais do que um reconhecido mitomaníaco bobalhão, ele foi a um programa humorístico chamado “Fritada”, organizado pelo comediante Diogo Portugal para ridicularizar algum famoso, com a desculpa de o homenagear. Foi a edição de maior audiência! O teatro estava lotado e o pay per view da edição vendeu muito bem. Na audiência, entre seus apoiadores, havia também aquela massa desejosa de catarse, querendo ver a humilhação moral do super-homem ridículo. Marçal, no entanto, no fim da “Fritada”, tomou o microfone e fez daquele evento uma palestra sua. Pode-se dizer muita coisa sobre ele, mas um fato é inegável: sua retórica é incrível; soube transparecer nesse momento muita humanidade; sua postura comoveu a plateia e conseguiu reverter aquele quadro de ridicularizações que os humoristas vinham fazendo com ele.
Posterior a isso, veio um dos períodos mais emocionantes e comoventes da história do Brasil: as enchentes no Rio Grande do Sul. Toda a nação brasileira preocupava-se naquele momento com o auxílio que deveria ser prestado aos gaúchos. O Brasil estava ferido e começou a se recompor pela ajuda mútua, especialmente à margem dos descasos governamentais, federais e estaduais; o que mostrou que o Brasil antes de tudo é uma Nação, cujo povo é capaz de agir quando esse Regime disfuncional nada pode fazer.
Em meio a todo o drama das enchentes, os aventureiros não deixam de se aproveitar. Seria esse um período conveniente para vender infoprodutos? Para Marçal, foi. Enquanto posava de arauto da caridade e insuflava no coração das massas que o assistiam todo o sentimentalismo de revolta contra o “sistema”, que em teoria estava barrando seus caminhões de suprimentos, ele propagandeava e vendia seus próprios produtos. Seriam dele mesmo esses caminhões que dizia que estavam sendo barrados? Isso foi algo que nunca se comprovou. Ele dizia que em Portugal tinham juntado não sei quantas toneladas de alimento, e exigia da FAB um avião para buscá-los, mesmo que o preço da gasolina desse para comprar muito mais mantimentos do que os que lá haveria.
Toda a sua propaganda pessoal estava funcionando, e aquele anteriormente visto como um palhaço, agora era um herói nacional. Foi o cara que ajudou nas enchentes do RS, e foi também o que deu moradia para africanos.
Tudo isso era verdade… né? Ora, era possível que ele continuasse mentindo? Aparentemente, todas as mentiras absurdas dele tinham sido esquecidas.
Começaram as campanhas eleitorais dos municípios. A cidade mais importante do Brasil e da América Latina inicia sua disputa pela escolha de quem a vai gerir. São Paulo tem um cenário não muito distinto do resto do Brasil, e um dos problemas substanciais que essa democracia fracassada ocasiona: todos os candidatos são péssimos, e o eleitor tem a tarefa ingrata de escolher o menos ruim. Pablo Marçal é um desses nomes em disputa.
Notemos que nos períodos comuns, as mentiras e as ações espalhafatosas são vistas como um desajuste; mas em épocas de agitação sentimental e de crise: essas mentiras e essas ações são facilmente comoventes. Ora, para alguém como Marçal ganhar qualquer apoio, ao ponto de ser cogitado para governar a cidade mais importante da Nação, só se fosse no caos infindo da democracia liberal.
Ele inicia sua campanha dizendo que é de direita e apelando ao púlico cristão. O mesmo cara que dizia que São Francisco era um sujeito que fez voto de pobreza e “rolava no chão entre porcos” só pra “chamar atenção”, enquanto convencia um padre a quebrar seus votos de pobreza e de celibato, agora se arroga representante político dos cristãos!
Os debates iniciam, e presenciamos uma série de ataques vazios e absurdos, que fariam qualquer leboniano se arrepiar na espinha. Marçal começa dizendo que Boulos é um cheirador de cocaína; diz depois que Nunes agride a mulher; daí fala que o pai da Tabata Amaral morreu por culpa dela; insinua também que Datena é um estuprador, enquanto menciona Racionais MCs.
Num debate, Tabata perguntou a Marçal como ele era capaz de culpá-la pelo suicídio de seu pai. O candidato responde simplesmente que não conhecia bem sobre sua vida, e toma o resto do tempo para falar mal de Nunes. Como o suicídio do pai de uma pessoa ao seu lado pode ser um assunto tão trivial e desimportante ao ponto de ser só um detalhe que se pode sair falando por aí, sem nem ligar quanto ao que se diz?! Para Marçal foi.
Ele tomou uma cadeirada da Datena. Alguém chegou a se comover com isso? Mas Marçal quis compará-la à facada de Bolsonaro e ao tiro de Trump. O candidato provocou Datena de todo o modo possível. Ele então literalmente pediu pro candidato o agredir. E foi mesmo! O que o super-homem, atleta de triatlo fez? Correu, dando até as costas para o oponente.
Mais recentemente, quando, em meio às suas provocações baixas, Marçal foi expulso do debate dos Estúdios Flow, seu assessor agrediu um da equipe do Nunes, com um golpe tão violento que encheu seu rosto de sangue. O agressor bateu e saiu correndo; sem demonstrar hombridade nenhuma de, a despeito de ter atacado na covardia, ao menos ficar ali para lidar como um homem com a situação.
Duas violências físicas durante os debates, envolvendo de alguma forma Marçal. Uma cadeirada e um soco. Esses fatos podem, perante os mais ingênuos, passar como grandes subversões da disputa eleitoreira da democracia liberal. Na verdade, são apenas consequências óbvias desse pandemônio político.
O demoliberalismo, ao contrário do que os liberais alardeiam quando o querem defender, não é um regime de conciliação, onde se busca um equilíbrio entre propostas distintas, visando um consenso, uma atitude cooperativa. Na verdade, antes de qualquer outra coisa, a democracia liberal é o regime da violência. Violência moral e física.
Ora, o motor dessa máquina demoliberal é a disputa, é, melhor dizendo, a briga. Tende, nela, a vencer o mais violento, o mais rico capaz de comprar votos, o mais ofensivo, o mais inescrupuloso, o mais sem vergonha. A própria ideia de partido evoca à divisão, à briga.
Os eleitores não são pessoas organizadas, que através das suas funções sociais influem na política, como de fato uma democracia verdadeira, uma democracia orgânica, deveria dispô-los. São indivíduos, são uma massa, são uma multidão desvairada. A democracia liberal busca transformar o eleitor numa safra a ser disputada pelas foices dos partidos.
Há algo a que podemos agradecer profundamente a Marçal? Certamente ao fato de ele estar escancarando a natureza real do demoliberalismo: a briga. Deve-se se revoltar contra suas atitudes estapafúrdias? Obviamente que sim, porque são ações que aviltam contra a dignidade popular, conforme quer se chegar à política pelo meio mais sórdido. Mas não se pode negar que ele apenas está apresentando como conclusão prática aquilo que o próprio regime liberal deixa como pressuposto teórico. As atitudes do Marçal são idiotas conforme a própria liberal democracia o é.
Sejamos sinceros: num regime baseado nas realidades orgânicas da sociedade, que delas vá colher direcionamentos, alguém tão idiota quanto o Marçal jamais seria sequer cogitado a se tornar estadista, de tão artificial e vazia que é sua campanha.
Não nos esqueçamos de que este regime político atual é o da violência. Quanto mais o tempo passa, mais a violência vai se impor como fator decisivo, em busca de ditar as regras. Foi assim quando esfaquearam Bolsonaro, foi assim quando tentaram matar Trump. Um cenário típico dos problemas do demoliberalismo mancomunados com o crime é, por exemplo, o que temos assistido ocorrer na cidadezinha potiguar de João Dias, onde, numa sequência de assassinatos e de vinganças, entre as disputas pelo poder, assassinaram há poucos dias o prefeito (que concorria à reeleição) e seu pai.
Os atentados são cada vez mais frequentes; a balbúrdia é cada vez mais decisiva ─ a violência financeira da compra de voto agora é mais descarada, e tem como instrumento as armas de fogo. Esse regime liberal se sustenta em duas pernas: o marketing e a “pistolagem”.
O povo brasileiro é digno e não merece estar à mercê das violências, para manutenir seus deveres e direitos políticos. Esse regime da violência deve ruir, deve ser substituído: o que deve prevalecer é a civilidade, a ordem, os fundamentos cristãos de um novo Estado; os fundamentos ordeiros de uma nova democracia.
Retiremos a idiotice da gênese do Estado. Assim os idiotas de qualquer tipo serão expelidos como carrapatos secos.
Jonas de Mesquita
Rio Grande do Norte